domingo, 29 de julho de 2012

BALADA AOS NAVEGANTES

















Não cantarei donzelas formosas
Não anunciarei o profeta ascético
Não colherei nem lírios, nem rosas
Não chorarei o triste pretérito


A negação proposta, legítima
revela alarmes delirantes
A retórica formal, analítica
oculta abismos inquietantes


Sois deuses em pequenos mundos
Pulsa o gênio em minhas veias
Vulgarmente adiciono segundos
Desejo a emersão de belas sereias


O mar que naufraga meu barco invasor
sepulta navios: mordaz tribulação
O vago clarão no horizonte da dor
avista esperança, desejo e ilusão


Ancorarei na ilha desértica,
melancólica viagem
Acamparei minha dialética:
nobreza e saudade



NOTA DO AUTOR:


"Navegar" é condição para viver.

No barco do pensamento velejamos em direção ao destino outrora preparado e atualmente construído.

As negativas do texto: "não cantarei..., não anunciarei..., não colherei..., não chorarei", demonstram um anseio da voz lírica de defender-se das imagens externas que poderiam influenciar o seu autodescobrimento. O que importa são as manifestações internas espontâneas, não viciadas pelo olhar do homem-mundo.

Ao final o que resta é a franca intenção de retorno às origens.


domingo, 22 de julho de 2012

UMBRAIS AVILTANTES







Abrindo caminhos
revelando aurora
Ouço canto bendito
a espalhar a flora

Lágrimas traduzem o desabafo
multidão aflita cambaleia
Sofrem irmãos açoitados,
penitentes, retraídos, angustiados...

Vozes a clamar por divina bondade
crianças, jovens, mulheres imploram verdade
fonte profícua emana reluzente

Rasgados, humilhados, maltrapilhos,
velhos, derradeiros filhos, famintos
contrapõe a dor uma fé eminente

Esta plaga composta de íntegros valentes
flagelos incontestes, trabalha a Providência:
os lírios campestres da expiatória existência.



NOTA DO AUTOR:


A dor como instrumento de aprendizado... Este é o mote do texto acima, que relata de um lado o sofrimento, a expiação com suas consequências inevitavelmente dolorosas. Porém, há um contraponto que sustenta, fortifica e engrandece a esperança: a fé. Fé em seu genuíno estado de confiança firme e perseverante, certos de que não há mal que perdure eternamente.

Consolados pela potente ação da Providência Divina caminhemos com a certeza de melhores dias, construídos com a argamassa das boas palavras e das iniciativas saudáveis.

Espelhemos vida para que a vida nos visite.

domingo, 15 de julho de 2012

PERFUME FEMINIL

(A uma passante)















O laço abraça augusta senhora
enroscada ao alarde da última hora
Ouve-se a valsa, ausente surdina
transpõe ao cântaro: água cristalina

Pelo salão ecoa um lúgubre canto
a dançarina emerge em visão retilínea
Cobrindo seu corpo um rosado manto
compõe a paisagem a noite fria

Seus olhos são harpas de doce melodia
seus lábios, o bálsamo do guerreiro convalescente
Suas mãos acariciam a solene poesia
seu rosto, o fulgor do sol nascente

Amarei tão somente o delírio idealizado
Reconheço a perfídia do amor entronizado
A dor do apreço, o peito dilacerado

Portões erguidos, janelas fechadas...
A senhora sorriu e partiu luminosa
Deixando na mente a lembrança formosa 



NOTA DO AUTOR:

Texto inspirado nos célebres versos do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), em poema intitulado "A uma passante", publicado na obra "As flores do mal".

Reproduzimos a seguir, de forma parcial, o poema:

"A rua em derredor era um ruído incomum,
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;"

(...)

"Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei, um dia e já na eternidade?"

"Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais!"

Fragmentos do olhar do autor sobre a imagem idealizada do amor que insinua-se em breves reflexos espelhados. Amor que canta a impossibilidade de vivê-lo, convertendo-se no prazer em apreciá-lo.


domingo, 8 de julho de 2012

DRAMA MÍSTICO DE UM DEUS DA GRÉCIA




















O misantropo tropeça nas próprias deduções
Anacrônico, permuta indagações:
a espontânea atemporalidade dos dias
Cansa-se de blasfemar em vão
Procura uma réstia, um recanto qualquer,
angustiado sorri


Sarcástico,
o misantropo delira
Vê-se no alto da colina
carregado pela bruma marítima
Expira o escárnio imposto por si
Desejando redenção martiriza-se


O misantropo reduz ao fundo
aspirações que condensam a dor
Reflete em seu rosto
o singular brilho da restauração
Liberto, compreende a imortal pulsação
Reproduz e recomeça: o entreposto

Na sina, um dia, a trilha...



NOTA DO AUTOR: 

Em seu aspecto simbólico o texto se refere ao deus grego Hermes, para os romanos Mercúrio.
 
A imagem deste personagem da mitologia está associada, entre tantas atribuições, ao de mensageiro dos deuses, patrono da eloquência e guia da alma dos mortos para o reino de Hades (planos inferiores para os gregos). É também considerado o inventor da lira, e vários autores vinculam sua imagem ao de tutelar da cultura ocidental contemporânea.
 
No texto o drama do deus grego mistura-se ao conflito interno de nós mortais: comunicar, interagir, manifestar em palavras nossa ação no mundo. Ao mesmo tempo há uma voz (interna) que pede silêncio, pausa e reflexão. Um exercício contínuo de introspecção para preservar a vida (a voz interna) que sugere estados mais elevados para a alma humana.
 
A mensagem de Hermes é o impasse de comunicar o ser onde ser não é permitido.


domingo, 1 de julho de 2012

(RE)CONSTRUÇÃO








 
Tecendo a manhã,
a aranha arquiteta
sua teia funcional
Projeta o teto sólido,
as paredes impermeáveis,
o piso irrefutável

Preenche espaços, mobília quartos,
instala aparelhos, acende luzes
e abriga os primeiros moradores
Cores, flores e dores
ali estão,
decorando impressões

Os meses e os anos corroem o entusiasmo inicial
As cadeias aprisionam e mofam as lembranças
O engenheiro cansado,
derruba paredes,
desalinha o piso e perfura o teto,
antes almejado

A aranha desbravadora,
impávida
se refaz:
avista novos planos,
outros sonhos
e desenha esperanças...


NOTA DO AUTOR:

A aranha representa a mente racional construtora do pensamento. Força que plasma ao nosso redor o universo material e moral em que nos movemos.
Em nossa casa mental repousam virtudes e vícios, talentos e fragilidades que se moldam em sutil (re)construção da atmosfera coordenada pela inteligência humana.
Em contraponto temos ações e reações externas que norteiam os estímulos que pacificam ou desarmonizam o ambiente em que vivemos.
Arquitetos, engenheiros da existência, tecemos a vida pelo fio condutor das ideias que prenunciam nossas atitudes.