domingo, 30 de dezembro de 2012

BERRO PÚTRIDO FETO



Varapau, vara corpo

o mugido

silencioso

de um bezerro morto


Passo a passo:

O carregador aflito,

mato,

cana,

o cheiro putrefeito do feto


Acolhido pelo braço indigente,

fúnebre, estanca a saga

Varapau, vara corpo

o enlace do quadrúpede,

um lamentar absorto


Alguém chora,

outro reflete,

um terceiro inscreve o poema

A estranha sensação do que é a morte


A terra,

o chão aconchega o feto,

como se fora

um abrigo derradeiro


Varapau, vara corpo

um vento sorrateiro

embala a soturna canção do mamífero:

desencarne envolto



NOTA DO AUTOR:

Os ciclos de morte e vida integram a criatura e a criação.

Além da existência há vida a inspirar renovação.

A esperança é o ópio da imaginação.




domingo, 23 de dezembro de 2012

A MESSALINA

 
 
 

O verso pálido que exala
 
a prostituta
 
O leito, o esperma, o cálice
 
de cicuta
 
 
(Fecunda o chão, a semente
 
da dúvida)
 
 
Astuta, a meretriz deseja contemplar
 
o aprendiz
 
Sedutora, atrai a inocência feliz
 
e acolhedora
 
 
Vago e ermo, o tempo crava o seu punhal
 
e sorri
 
Vaporosa, a fêmea transparece
 
oniricamente
 
 
Somente as horas passadas reabilitam
 
a memória
 
Fugaz e luminosa, a vida intervém:
 
serena e transitória
 
 
 
NOTA DO AUTOR:
 
 
Retrato de um tempo: A coisificação do ser e a humanização das coisas.
 
Há mercantilização na ânima e no inanimado.
 
Prefiro a assertiva de um certo Rabi galileu: "Em verdade vos digo, que os publicanos e as meretrizes vos precederão no reino dos céus." (Mateus 21; 31)
 
 
 
 
 


domingo, 16 de dezembro de 2012

REFLEXO CONFESSIONAL




Transfiro para o espelho
 
um ermo sorriso bandoleiro
 
Reconheço chagas escamoteadas
 
disfarço intenções inconfessadas
 
 
Um breve relato involuntário
 
desfavorece a ideia ordenada
 
A cruz arremessa ao calvário
 
a consciência infame, conspurcada
 
 
Respiro o odor cadavérico
 
da dor lanhada, pungente
 
Contorno o rosto macérrimo
 
com dedos lânguidos, solventes
 
 
Confesso o emaranhado momento
 
consternado, retraio o lamento
 
O ganido ecoa angustiado
 
um grito solenemente fadado
 
 
Indelével em cinzas reduz
 
o ultrajado orgulho conduz...
 
 
 
NOTA DO AUTOR:
 
 
Externar sensações através de espelhamentos e  fragmentos de memória é um exercício de autoconsciência.
 
Há mais ousadia no ato de confessar do que na intenção de remir.
 
 
 
 
 
 
 

domingo, 9 de dezembro de 2012

LABIRINTO IGNOTO

 
 

Espalho pela gândara o lamentoso ganido dos cães

Ladram esfomeados: a lactação alimentícia

Lacaios ladeiam minha impávida pretensão

de expor o complexo mosaico



Um esboço mal traçado,

arquivado na gaveta de ébano arcaico

Sons - transmutam o significado

Monstros - emergem do oculto lago



Porões embolorados delatam a noturna compulsão

por rastros passageiros

O hermético poeta estende a mão,

pede atenção, sorri lisonjeiro



Galopando sobre o tempo entrega-se sem receio

ao caminho estreito

Submergindo, sumindo, emboscado pela névoa:

recriadora, renovadora, genésica, atemporal...




NOTA DO AUTOR:


Um convite à imersão.

domingo, 2 de dezembro de 2012

MEMÓRIAS: POEIRA...



 
 


Artífices iniciantes?!

Mares flutuam em minha mente

O vaso vermelho quebrado sobre o beiral

ofusca o brilho benemérito dos lírios


Suspira a donzela no vilarejo distante

Atrai-se para o bárbaro furor forasteiro

Estrangeiro, em terras vizinhas

recompõe o sabor da conquista


Coloniza a desabitação dos dias findos

Chuva serena,

troveja no mangue... meu sertão!

Caranguejos, filhos dos escombros


Tênues consolações achegam-se aos surdos ouvidos

Essa mão que acaricia a face morena

Esse sol alquebrado das colinas

Algures, um sino badala: religiosamente...



NOTA DO AUTOR:


A memória como um filtro de percepções fragmentadas.

O fragmento cumpre seu papel de impressionar a inteligência racional.

A razão por não se bastar transcende à intuição.

A intuição sente os símbolos e reelabora o pensamento.

O pensamento manifesta-se em palavras: expressão material do indefinível.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

CALDEIRÃO MULTICOR

 



Arranco o sal da sua boca
 
com um beijo esfacelado
 
Língua áspera, garganta rouca
 
Vitral colorido, estilhaçado
 
 
O cimento do silêncio
 
reproduz paredes fortes
 
Tranca a porta do aposento:
 
ríspido, triste, audaz e nobre
 
 
Escorre pela rua
 
sangue novo meu amigo
 
Já não sabe em qual lua
 
repousar o seu abrigo
 
 
Planeja nas esquinas
 
A farpa cálida do seu pranto
 
Traz em si chagas benignas
 
desaguadas em enganos santos
 
 
Ofegante abre o seu peito
 
rasga e pisa na mortalha
 
Mas, não pense em desrespeito:
 
quero aquecer a fornalha!
 
 
 
 
NOTA DO AUTOR:


A introversão como um convite ao autodescobrimento.
 
O enfrentamento dos focos conflitivos da personalidade desnuda a causa da dor ôntica.
 
A chamada "zona de conforto" é uma máscara de enganosa repercussão: de um lado a aparente tranquilidade, e do outro a fatal estagnação.
 
O ser pleno é um devir, uma constante mutação.
 
Reinventar-se é obra de coragem e fé!







domingo, 18 de novembro de 2012

ALEGORIA







A rosa de um poema não precisa ser vermelha
 
Pode ser, por assim dizer... descolorida
 
Não precisa estar no campo, no jardim
 
Pode estar na lama, no bruto lapidar
 
 
 
Inodora, se possível
 
para não envenenar
 
Uma rosa comestível, por que não?!
 
para matar a fome de amor
 
 
 
Uma rosa explosiva (radioativa)
 
pode trucidar
 
A rosa do poema tem urgência
 
de dignificar, desconstruir às avessas
 
 
 
A rosa antipoética refaz
 
a política ideia
 
de reconduzir
 
à lugar nenhum (fora de nós)
 
 
 
 
NOTA DO AUTOR:
 
 
A força dos símbolos como forma de representação do insconsciente.
 
A "rosa" do texto pode não ser flor. A palavra, como materialização do pensamento, deve estar livre de todo e qualquer condicionamento que limite a capacidade criativa, quando se pretende multiplicar signos linguísticos.
 
Toda arte nasce da necessidade de expressão. Para isto não carece de utilidade e nem de objetivo.
 
Há na subjetividade qualquer coisa de infinito que atrai, e mantém o sentido da vida.
 
 
 
 
 

domingo, 11 de novembro de 2012

VENENO DA RAÇA


 




Já sangrei minha dor
 
Provei o temor do perigo
 
Degustei o vinho proibido
 
Ganhei, perdi, busquei abrigo
 
 
Aflitos, sós: são sóis de sãos
 
Derrama cálices lunares crescentes
 
Inclassificáveis formas de ser
 
Domina o fascínio da serpente
 
 
Ausente sentido infinito
 
Onde estão os culpados?
 
Contém o grito demente
 
 
Herança de antigas gerações
 
Barbárie de tempos longíquos
 
Atávico, em tempo presente
 
 
Indiferente maneira de vê-la
 
Da capela ouve-se o apelo
 
Um dilema envenena a alfazema
 
 
 
 
NOTA DO AUTOR:
 
 
A sintomatologia alegórica do pecado, da culpa e da queda humana.
 
Até que ponto a transgressão da lei natural é parte integrante da própria lei?
 
Crer que a raça humana é a resultante da maldade e da impureza é tão ilógico quanto irreal.
 
Aceito a rebeldia como um estágio opcional de contestação para o aprendizado. Mas, não entendo que a busca do conhecimento por meio da experiência pessoal seja antinatural.
 
A perfeição possível não está no trajeto está na chegada.

domingo, 4 de novembro de 2012

A MÃO


 
(NA ESCADARIA DE UMA CIDADE QUALQUER)
 
 
 
 
 
 
 
 
A mão espalmada ao ar...pede
 
Degrau pós degrau sinto-a distante
 
Vou subindo,
 
não indiferente: relutante
 
 
A mão espalmada ao ar...pede
 
Passam pernas,
 
por ela, apressadas
 
Sobem, descem as escadas
 
 
Espalmada, a mão pede
 
Não cede,
 
não esquece,
 
não desaparece...
 
 
A mão espalmada ao ar...pede
 
Respiro cheiro familar, no ar
 
Carne humana servida
 
 em cada esquina ao Deus-dará
 
 
A mão espalmada ao ar...pede
 
Nos outdoors as luzes são luxo
 
Na escada, sentada, quase imóvel
 
A mão... pede
 
 
No lixo, na praça,
 
na escadaria, portaria
 
Quase extática,
 
quase viril, quase viva
 
 
A mão espalmada ao ar...pede
 
Cede,
 
esquece,
 
desaparece...
 
 
 
 
NOTA DO AUTOR:
 
 
A indiferença social como violenta forma de exclusão humana. O texto acima denuncia a omissão da sociedade civil perante o próximo, tratado como distante ou ausente, por não enquadrar-se no sistema-modelo adotado.
 
A "mão" é símbolo do pedido, do apelo deste incômodo solicitante que, por vezes, bate a nossa porta, ou ousa nos parar na via pública, para nos lembrar sua existência.
 
A "mão" que pede e apela por sobrevivência é a mesma mão que acolhida pela dignidade do trabalho e da instrução produz o cidadão consciente.
 
Nas malhas do ventre da mãe cidade é tecido o amanhã dos anônimos transeuntes. Somos parte integrante desta roupagem, cuja tessitura veste a justiça social. 
 


domingo, 28 de outubro de 2012

LETÍCIA







Era uma sombra
 
Era uma sombra sorrateira
 
Cobria em manto meus desejos
 
Não era luz. Era sombra.
 
 
 
Delituosa,
 
rodeava lépida meu jardim

Não era luz.

Era sombra.



Licenciosa,

aconchegava-me nos dias de calor

Não era luz.

Era sombra.



Assim, deitada na relva...

Como dediquei-me a este imprevisto!

Voraz, um beijo

Um beijo...



Não era luz.

Era sombra.

Um veraneio de perfume róseo

Fêmea em luz: sombra em poente




NOTA DO AUTOR:


O nome próprio "Letícia" tem sua origem no Latim "Laetitia", e significa "alegria", "felicidade".
 
Com esta conotação de adjetivo o título do texto deve ser compreendido.
 
A presença da "sombra": sorrateira, delituosa, lépida, licenciosa, voraz não insinua ocultação, ou negativa influência, mas, ao contrário, indica uma solar proteção, aconchego, agradável estadia, descanso, repouso sem amarras, culpabilidade ou autopunição.
 
Não era "luz", pois não trata-se de uma revelação. A "sombra" é um salutar imprevisto.
 
A figura feminina associada ao texto projeta a intenção de vida exuberante, bela, atraente e exultante.


domingo, 21 de outubro de 2012

CÂNTICO MANIFESTO







"Digno - tornou-se torpe.
Altivo - sentiu-se nefasto.
Nobre - fez-se biltre.
 
Burilam os arautos o verbo,
carece nova direção"
 
 
 
 
Tão vil quanto o ímpio
a miragem cegou olhares
Contempla seu fascínio,
lança o arpão aos mares
 
 
Fisga incrédulos,
vãos confrades
Esperam séculos,
em liberdade
 
 
Ardil paira,
sombra em vista
Cultiva seara:
flor e conquista
 
 
Sorvem o cálice,
rasgam véus
Violam mausoléus,
descobertos abrem-se
 
 
Fecundam às noites,
trêmula bandeira
Castram-se açoites,
manhã clareia...
 
 
 
 
NOTA DO AUTOR:
 
 
A liberdade imantada ao determinismo.
 
Opondo-se ao ilusório sentido da liberalidade sem restrição, o texto sugere a seguinte reflexão:
 
Livre arbítrio e determinismo coexistem?
 
A resposta afirmativa repousa no argumento de que toda ação é causa, e livre escolha. Ao mesmo tempo, a escolha determina o efeito e suas consequências.
 
Conquistamos parcelas gradativas de liberdade à medida que reeducamos nossa mente para a ação responsável.
 
Quando não há desprendimento nos tornamos cativos.  

domingo, 14 de outubro de 2012

BENJAMIM
























Voltou meu filho

Neste dia doei 

o que de mais nobre possuía: afeto

A roupa maltrapilha,

os lábios secos,

o olhar arrependido



Voltou meu filho

Com o manto

cobri sua penúria

Com os braços

protegi seu medo

Com os olhos ofereci refúgio



Voltou meu filho

Ao pródigo não louvei em festa

Afaguei a dor

e renunciei ao patriarca

O apreço anunciava coração fraterno,

pois éramos somente um na tarde fidalga




NOTA DO AUTOR:


Benjamim: o filho preferido ou o mais moço.

A paternidade e a filiação exposta além dos vínculos corporais...

A adesão humana à afinidade espontânea, natural.

A irmandade que nos faz tão semelhantes e tão desiguais...

O Pai Criador engendra no poente o homem do amanhã.









domingo, 7 de outubro de 2012

CLARA E FRANCISCO



 
 
Fotografia: Do filme "Irmão sol, irmã lua", do diretor Franco Zefirelli



Fulgura o sol a estrada de um santo

Irmã lua, homenageia sua auréola

Transporta seu brilho sobre os montes

Alverne - pleno palácio da luz



Cantam os pássaros, sobrevoam colinas,

saúdam o cavaleiro da humildade

São louvores entoados...

A dama pobreza esposada, sorri altaneira



"- Quando florirem as flores voltarei a vê-la"

Clara, claridade

A caridade dignifica a dor

Reflete na Terra o céu em paisagem



O apóstolo-renúncia sublima o amor,

com a lucidez de um arauto divino

Badala um sino... anuncia a mensagem:

Caminho que leva a verdade e enaltece a vida - paz e fraternidade




NOTA DO AUTOR:


Texto em homenagem a Clara e Francisco de Assis.
 
Clara chamava-se Chiara d'Offreducci. Nasceu em Assis (Itália), em 16 de julho de 1194, e faleceu na mesma cidade de Assis, em 11 de agosto de 1253. Foi a fundadora da ramo feminino da ordem franciscana.
 
Francisco chamava-se Giovanni di Pietro di Bernardone. Nasceu na cidade de Assis (Itália), em 05 de julho de 1182, e faleceu na Porciúncula em 03 de outubro de 1226, tendo sua festa litúrgica, em 04 de outubro. Fundador da ordem franciscana.
 
Exemplos reais de genuína espiritualidade, respeito às criaturas e à criação, em perfeita sintonia com a filosofia cristã.